A realização de uma campanha antivigilância biométrica em massa
Por Filip Milošević, Fundação SHARE
Resumindo: este estudo de caso descreve uma série de ações realizadas por uma comunidade de ativistas durante uma campanha de 18 meses contra um novo projeto de vigilância em massa na cidade de Belgrado, na Sérvia. Eles não só conseguiram aumentar a conscientização sobre o problema, como também envolveram os cidadãos no movimento. Após a campanha, o governo finalmente admitiu suas tendências ilegais e interrompeu a implementação do software de reconhecimento facial.
Embora este texto tenha sido escrito por uma única pessoa, é uma história de muitos, narrado a partir da perspectiva de vários ativistas de direitos digitais da Fundação SHARE que coordenou a campanha.
A SHARE Foundation é uma organização de direitos digitais de Belgrado, Sérvia, que reúne pesquisadores, engenheiros, advogados, ativistas e artistas para entender melhor as tecnologias emergentes, lutar por internet, e capacitar seus concidadãos para combater a vigilância em massa por governos e corporações.
Como isso começou
Em uma noite fria de inverno em Belgrado, na Sérvia, em janeiro de 2019, houve um anúncio público bastante estranho feito na TV nacional sérvia:
«Não haverá ruas, entradas ou passagens importante entre edifícios que não serão cobertas por câmeras. Saberemos de qual entrada e prédio veio o criminoso, de qual carro…» (tradução dos tradutores a partir da tradução do inglês pelo autor do original sérvio.)
Essas foram as palavras do Ministro do Interior da Sérvia (o homem encarregado da polícia) na época, que se gabou de um novo sistema de vigilância inteligente que nosso governo acabara de comprar da empresa chinesa Huawei. Ele disse que a implantação de 8.000 câmeras inteligentes tornaria nossa capital, Belgrado, mais segura e até mesmo ajudaria a combater o crime organizado e o terrorismo.
Como pesquisadores da Fundação SHARE, sediada na Sérvia, com um interesse especial em vigilância, ficamos chocados, mas outro pensamento veio imediatamente à nossa mente:
“Muitos de nossos concidadãos realmente veem isso como algo bom. Quem não gostaria de mais segurança e menos crimes?”
Ao ler isto, há um fato importante a saber sobre o histórico de segurança nas ruas de Belgrado. No nível da comunidade e das ruas, Belgrado é um lugar bastante seguro para os cidadãos. No entanto, há interações de alto escalão documentadas entre alguns dos agentes do governo e o crime organizado, que vão muito além da segurança nas ruas que 8.000 câmeras seriam capazes de proteger.
Após esse anúncio público, muitas perguntas começaram a surgir em nossas mentes:
Qual é o verdadeiro objetivo desse novo projeto de vigilância nas ruas?
Por que não houve nenhuma discussão pública prévia?
Esse sistema de vigilância em massa é legal em nosso país?
Como isso afetará nossa sociedade?
E, finalmente, como nós - as pessoas que se importam - podemos impedir isso?
Alguns detalhes sobre a situação na Sérvia, em 2021-2022:
Ultimamente, a Sérvia tem sido considerada um regime híbrido, oficialmente uma democracia que luta para ingressar na União Europeia, mas, na realidade, é mais um sistema autoritário sob forte influência de China. O governo frequentemente controla a mídia, ameaça jornalistas , suprime a liberdade de expressão e a cultura de protesto, além de difamar jornalistas investigativos independentes e oponentes políticos.
Obviamente, cobrir toda a cidade com câmeras que reconhecem as pessoas sem o conhecimento e o consentimento delas ajudará nesse tipo de controle social, produzindo um forte efeito inibidor, como nas prisões panópticas.
«Aqueles que já têm uma quantidade desproporcional de poder podem ganhar cada vez mais, e aqueles que já estão em posições de impotência ficarão ainda mais impotentes com essa dinâmica de quem pode vigiar e quem é vigiado.» (citação de Ella Jakubowska, da European Digital Rights (EDRi), em uma conversa com Filip Milošević, da SHARE Foundation, entrevista completa aqui).
Percebemos que precisávamos entender e expor as reais intenções do negócio com a Huawei, para ajudar os cidadãos a compreender as consequências deste sistema para a nossa sociedade, e oferecer-lhes formas de aderir a uma campanha inicial, bem como como um movimento de longo prazo para que juntos possamos criar um contra-narrativa no discurso público para se opor à falsa narrativa que o governo promoveu.
Percebemos que precisávamos entender e expor as verdadeiras intenções do acordo com a Huawei, ajudar os cidadãos a entender as consequências desse sistema para nossa sociedade e oferecer a eles maneiras de participar de uma campanha inicial e de um movimento de longo prazo para que, juntos, pudéssemos criar uma contranarrativa no discurso público para nos opormos à falsa narrativa promovida pelo governo.
Esclarecendo alguns conceitos-chave usados neste artigo:
Uma narrativa falsa é uma história que é percebida como verdadeira, mas tem pouca base na realidade.
Narrativa política refere-se a técnicas de contar histórias e discursos usados por políticos para apresentar um tópico ou um problema de um ângulo específico. Pretende influenciar a atenção ou a ação do público (cidadãos, eleitores, etc.) oferecendo uma certa perspetiva da realidade (por vezes em consonância com, ou contrária aos factos), que pode servir a interesses políticos particulares.
Contra-narrativas ão ideias, discursos, ou histórias que emergem de grupos marginalizados e não convencionais em oposição aos criados e promovidos por atores dominantes e poderosos promovendo o que pode ser considerado uma narrativa dominante ou «mestre». O conceito de contranarrativa implica reação, resistência e oposição (fontes: «Counter-Narrative», artigo de Raúl Alberto Mora e «Routledge Handbook of Counter-Narratives» 2020.)
Pesquisa inicial e os primeiros passos da campanha
Na Fundação SHARE, enviamos imediatamente pedido de liberdade de informação (FOI) ao Ministério do Interior da Sérvia (MOI) solicitando a localização das câmeras, inclusive a análise com base na qual essas localizações foram determinadas, além de detalhes do processo de aquisição pública e outros procedimentos legais relevantes.
Depois de pouco mais de um mês, o Ministério respondeu que os documentos de aquisição eram protegidos como «confidenciais». As informações sobre os locais e a análise não foram fornecidas a nós em nenhum documento ou mídia. Aqui está um pequeno artigo sobre o assunto, incluindo as solicitações FOI anexas e as comunicações relacionadas da SHARE Foundation.
Embora não tenhamos obtido as informações exatas que solicitamos, a negação em si foi uma informação valiosa e uma questão fundamental para apresentar ao público. Tivemos um forte motivo para dar início à discussão pública e à nossa pesquisa escrevendo sobre essa negação e enviando um comunicado de imprensa para os poucos meios de comunicação independentes que publicaram a notícia imediatamente. Esse processo inicial foi importante para nós, pois revelou que, às vezes, o ato de contar histórias pode ser um ato de investigação ou uma forma de dar início a uma investigação.
Ao fazer uma pesquisa mais aprofundada com fontes de informações disponíveis publicamente sobre esse e outros projetos semelhantes em todo o mundo, descobrimos que, por motivos promocionais, a Huawei realmente publicou um caso no site da empresa, fornecendo informações detalhadas sobre os recursos e a implantação do sistema de vigilância inteligente em Belgrado e sua cooperação com o Ministério do Interior da Sérvia.
Foi interessante (e um tanto vergonhoso) que uma empresa privada tenha nos fornecido muito mais informações do que nosso próprio governo. Mas esse caso publicado também foi uma oportunidade para nossa pesquisa de base. Entretanto, assim que analisamos as informações recém-obtidas e as publicamos, o estudo de caso foi removido do site da Huawei. Ainda assim, conseguimos recuperar um instantâneo da página da Web no [Archive Today] (https://archive.li/pZ9HO) e na Wayback Machine.
Recuperação de páginas perdidas e muito mais
Como este caso demonstra, os arquivos online são recursos extremamente úteis para os investigadores, tanto para encontrar páginas da web excluídas quanto para salvar e preservar informações online. Consulte o guia «Recuperando e arquivando informações de sites» disponível neste Kit, para aprender mais técnicas, dicas e ferramentas que o ajudam a recuperar informações históricas e “perdidas” de sites, bem como arquivar e preservar suas próprias cópias de páginas da web para referência futura.
Imagem: estudo de caso da Huawei sobre as necessidades de vigilância nas ruas da Sérvia. Fonte captura Wayback Machine
Essa sequência de ações obscuras e controversas de uma parceria público-privada confirmou que nosso governo estava escondendo informações de seus cidadãos, mas também alimentou o debate necessário sobre esse tópico e nos ajudou a alcançar por meio da mídia, pelo menos, a bolha inicial de cidadãos preocupados. Sabíamos que tínhamos provocado a discussão porque as pessoas estavam comentando muito e compartilhando o artigo em que expusemos essa estranha remoção de conteúdo.
Nesse ponto, tudo o que fizemos foi reativo, sem pensar muito em estratégia. O que sentimos, porém, foi que nosso governo simplesmente continuaria com o projeto. Portanto, quer o impedíssemos de alguma forma, ou não, por meio de uma campanha, essa luta seria longa e difícil e não poderíamos ir à luta sozinhos.
Nossa próxima meta era encontrar uma maneira de iniciar uma comunicação direta com os concidadãos interessados, para que pudéssemos continuar esses esforços juntos e, com sorte, ir além de uma campanha isolada e desencadear algum tipo de movimento contra a vigilância em massa que fosse duradouro.
Primeiro contato: entrando em contato com a comunidade
Belgrado é grande o suficiente para ter alguns indivíduos e pequenas comunidades interessadas em tópicos como privacidade, segurança e vigilância. Para ser mais preciso, isso significa duas ou três organizações da sociedade civil, um hackerspace e várias pessoas que ocasionalmente tuitam sobre essas questões. Iniciamos reuniões offline para dar início às discussões e apresentar algumas ideias sobre como deveríamos proceder. No início, foi uma pequena reunião no Belgrade Hacklab e, em seguida, conseguimos um espaço para um workshop em uma conferência de hackathon local, que usamos para promover o tópico e entrar em contato com algumas pessoas novas.
A essa altura, havíamos estabelecido comunicação direta com cerca de 15 pessoas e entrado em contato com outras 30, que sabiam que estávamos sendo proativos em relação ao problema. A maioria delas já conhecíamos pessoalmente.
A necessidades inicias da campanha
A «infraestrutura» inicial da campanha para a campanha pública incluía:
criar um micro-site simples com um formulário de contato,
escolher o nome do site e registrar um domínio,
executar um esforço inicial de mídia social para criar uma comunidade orgânica (natural) em torno do tópico e da campanha.
Agora, precisávamos ir um pouco mais longe. Para isso, criamos um microwebsite .html básico de uma página contendo apenas algumas frases simples, porém fortes, e vários links (como na imagem abaixo):
Fonte da imagem: SHARE Foundation / #hiljadekamera
Tradução do sérvio para o português (via tradução em inglês) do texto da imagem acima:
Dizia:
«Neste momento, milhares de câmeras com tecnologia de reconhecimento facial estão sendo instaladas em Belgrado. Nossa polícia está ocultando todas as informações sobre o projeto. Quais são os locais, para onde vão os dados, quem tem acesso e com que finalidade?
Esse sistema nos seguirá quando formos para o trabalho, para ver um amigo, um médico, tomar um drinque, ir a um protesto, acender um cigarro, sair do carro, abraçar alguém, conversar, criticar.
A vigilância em massa torna os cidadãos obedientes.
Será que queremos isso?
Se você quiser se manter informado ou ajudar de alguma forma, entre em contato. (e havia link para um formulário).
Mais sobre o tópico: Blic / Peščanik / Política Externa / Telegram»
Ciente do tempo médio de atenção do ser humano hoje em dia, o conteúdo era suficiente para que todos lessem, informações suficientes para ir direto ao ponto, com links suficientes se alguém quisesse mais e, o mais importante, um link para o formulário em que as pessoas poderiam dizer o que pensam, oferecer apoio, ajuda e estabelecer contato. Além disso, havia um link para um canal do Telegram que criamos, pois as pessoas conscientes da privacidade o utilizam e se sentiriam familiarizadas e identificadas com a fonte anônima que criou o site.
Quando terminamos o texto do microssite, que envolvia criar de uma imagem ascii da câmera e a montagem de tudo em uma página html responsiva que pudesse ser bem visualizada tanto em dispositivos móveis quanto em computadores, precisávamos de uma ideia para um endereço de Internet (URL) que pudéssemos registrar. Depois de mencionar «milhares de câmeras» tantas vezes naqueles dias, percebemos que esse era o nome perfeito para o URL, mas também para uma hashtag de mídia social, uma campanha e um movimento.
www.hiljadekamera.rs / #hiljadekamera (»milhares de câmeras» em sérvio)
Depois que alguém da equipe vazou o site que queríamos visualizar apenas no grupo interno do Telegram, ele foi imediatamente captado por um ativista conhecido e se tornou semi-viral. Esperávamos que isso acontecesse porque sabíamos que já havia algum interesse no assunto. Recebemos mais de 30 envios de formulários em pouco tempo. Não obtivemos muitos assinantes do canal do Telegram, mas isso não foi tão importante, pois a maioria das pessoas do formulário nos deixou seu e-mail, que era a melhor maneira de continuar a comunicação. Essa primeira onda online foi muito bem. Agora que tínhamos um nome, um URL e um microssite, um formulário e um canal do Telegram, podíamos usar isso para voltar ao espaço físico e continuar a nos comunicar e criar uma comunidade mais ampla.
Marketing de rua
É claro que os adesivos foram os primeiros a vir à nossa mente. Mas que tipo de adesivos? Não vamos simplesmente imprimir o URL ou a hashtag e colá-los sem pensar em qualquer lugar. Especialmente em locais públicos, eles seriam removidos pelos serviços da cidade. O que percebemos foi que a polícia era obrigada por lei a marcar as áreas que estão sob vigilância, mas não estava fazendo isso. Essa era a nossa chance. Tivemos a ideia de disfarçar nossos adesivos em adesivos oficiais para:
ajudar os cidadãos a entender que estão sendo vigiados e criar uma atmosfera de «sob vigilância» no centro da cidade;
aplicar nossos adesivos em postes de câmeras e eles não serem removidos por parecerem oficiais; e
adicionar um código QR que levaria as pessoas ao nosso site.
Fonte da imagem: SHARE Foundation / #hiljadekamera
Nunca soubemos quantas pessoas escanearam o código, mas os adesivos certamente foram brindes populares em eventos e filmar o processo de digitalização do código com um telefone e abrir automaticamente nosso site acabou sendo o conteúdo preferido das equipes de TV e jornalistas que cobriam a história.
Banco sob vigilância
De todas as questões relacionadas a esse projeto, a mais abstrata a ser explicada foi como a vigilância em massa afetaria o comportamento do cidadão e introduziria a autocensura por meio do «o efeito inibidor», que se refere à inibição dos direitos legais e é prejudicial à liberdade de expressão, à liberdade de reunião e à democracia.
Há um festival anual de arte aberta em Belgrado, o que significa que ele é bastante coletivo. Qualquer pessoa pode se candidatar a uma vaga gratuita e apresentar seu trabalho, e quase tudo pode ser considerado arte: uma pintura, uma escultura, atuação e teatro, oficinas, tocar música ou mixar discos.
Como nossa próxima ideia era explorar e mostrar como os cidadãos estão reagindo e se sentindo sob vigilância, optamos por fazer uma pequena instalação e uma intervenção no espaço para incorporar o «efeito de arrepio» entre os frequentadores do festival, colocando-os sob vigilância intrusiva nos momentos em que quisessem relaxar. Como geralmente não há lugares onde as pessoas possam se sentar em festivais lotados, pegamos o banco mais confortável e de melhor aparência que encontramos e o posicionamos em um local agradável e aconchegante. Logo acima do banco, instalamos duas câmeras fictícias com LEDs vermelhos piscantes para que parecessem reais.
Fonte da imagem: SHARE Foundation / #hiljadekamera
O cenário ficou bom. Imprimimos um código QR em uma placa de legenda que direcionava para um breve questionário sobre como as pessoas se sentiam quando estavam sob vigilância. As perguntas foram feitas sob medida para o público mais jovem do festival e incluíam algo como: «Você compartilharia segredos com um amigo, dançaria, se deitaria, beijaria ou mandaria mensagens sexuais para seu parceiro sob essas câmeras…?»
Obtivemos algumas respostas, mas a maior parte da interação e da discussão aconteceu na hora. Ficamos surpresos com o fato de os jovens poderem expressar claramente seus sentimentos e estarem muito cientes das intenções de vigilância em massa, principalmente por meio da cultura popular - filmes, livros e videogames - e de muitos deles se oferecerem para participar de nossa lista de e-mails e divulgar a notícia. No entanto, a maioria deles ainda não estava ciente do que realmente significava para a sua privacidade ter câmeras se aproximando todos os dias e cobrindo lentamente as ruas de sua cidade.
Envolvendo a comunidade: um evento colaborativo
Nossas próximas etapas foram:
planejar um evento de redação datathon / sprint,
escolher e adaptar as informações para o site oficial da campanha.
A essa altura, já fazia quase um ano que estávamos mergulhados em atividades de pesquisa e discussões dentro da pequena comunidade existente, com apenas um alcance ocasional da mídia. Naquele momento, finalmente nos sentimos prontos para avançar no modo de campanha e alcançar um público mais amplo.
Para isso, precisávamos de mais do que um micro-site ASCII obscuro, adesivos e uma imagem clara em nossas mentes. Percebemos que precisávamos de um novo impulso: um site decente com todas as informações que reunimos até então, processadas e sistematizadas para um cidadão comum, com várias opções para as pessoas participarem da campanha.
Era importante incluir o maior número possível de membros da comunidade nesse processo por vários motivos:
a criação de conteúdo e site mais ambiciosos exige recursos humanos e habilidades diferentes e não tínhamos orçamento; e
era importante descentralizar a campanha e torná-la o mais sem liderança possível para evitar um senso de propriedade de nossa parte e para obter mais envolvimento de todos os participantes, fazendo com que se sentissem parceiros iguais no projeto.
Decidimos logo no início que o projeto/campanha seria independente e livre de preconceitos em termos de apoio financeiro e geopolítico - não nos importávamos se a tecnologia era chinesa, europeia ou americana, portanto, não queríamos receber nenhum recurso de campanha, exceto do financiamento coletivo.
Então, lembra-se do formulário online que criamos e vinculamos no microssite para cidadãos interessados em manter contato ou ajudar de alguma forma? - Voltamos a ele uma semana depois e descobrimos que já havia mais de 50 envios, a maioria de mensagens de apoio, mas também ofertas de ajuda de pessoas com diferentes habilidades, como artistas visuais, web designers, desenvolvedores, pesquisadores, jornalistas e advogados.
Foi aí que tivemos a ideia de convidá-los para um evento de redação e design colaborativo, semelhante a um sprint, em que cinco grupos trabalhariam juntos em diferentes segmentos e conteúdos para um novo website. A comunicação com os participantes foi um desafio, mas crucial para o sucesso do evento. Inicialmente, convidamos pelo menos 60 pessoas. Metade delas nós já conhecíamos, algumas eram amigos de amigos e outras foram selecionadas por meio de um formulário online. Para explicar o evento, criamos novamente uma única página da Web em ASCII e a enviamos aos possíveis participantes como um convite. Ela dizia:
«Já se passou um ano desde que o Ministério do Interior anunciou repentinamente que a implantação de um sistema de vigilância por vídeo em massa com tecnologia de reconhecimento facial estava em andamento. O projeto e sua implementação ainda não são transparentes. Após muitas reações, consultas, várias discussões organizadas e trabalho comunitário para revelar mais informações, é hora de nos reunirmos em torno desse problema e fazermos o máximo que pudermos juntos.
A ideia é:
compilar textos informativos em vários grupos de trabalho,
fazer uma análise técnica do sistema por meio de patentes e outras informações disponíveis publicamente,
habilitar ferramentas de mapeamento de câmera de código aberto,
criar soluções visuais para apresentar os dados,
criar um plano de atividades,
adaptar as comunicações e, por fim
colocar tudo isso na Internet para que os cidadãos possam acessar».
Fonte da imagem: SHARE Foundation / #hiljadekamera
Após duas semanas de planejamento e comunicação, tivemos cerca de 30 confirmações para o evento de sprint. Ajudou o fato de termos nos comunicado diretamente com todos eles, de termos um plano definido do que queríamos alcançar e de a campanha já estar ganhando impulso. - Caso contrário, provavelmente não teria sido possível conseguir que todas essas ótimas pessoas passassem um dia trabalhando como voluntárias em uma ideia abstrata. A maioria deles sabia em qual grupo estaria participando, mas também que poderia trocar de grupo se sentisse necessidade.
Os grupos eram nomeados simbolicamente:
.TXT - pesquisadores e jornalistas que reuniam a maioria das informações importantes e as escreviam em uma linguagem legível por humanos,
Grupo .EXE - principalmente engenheiros descobrindo a melhor forma de visualizar e explicar a arquitetura dos sistemas de vigilância inteligentes,
Grupo .PDF - advogados e defensores analisando e resumindo todas as questões legais sobre o projeto e criando estratégias em nível de diretrizes,
.MAP - desenvolvedores que trabalham em um aplicativo para a localização de câmeras em um mapa,
.HTML - web designers reunindo tudo em um novo site.
Para o local do evento, reservamos uma bela galeria de espaço comunitário gratuito que tinha tudo o que precisávamos para receber esse grupo por um dia inteiro: mesas, cadeiras, eletricidade, wi-fi e um banheiro. Levamos alguns croissants e café pela manhã, distribuímos frutas por todo o local e pedimos pizza no final do dia. Não pensamos nem planejamos demais essa ação, queríamos que ela fosse simples, confortável e servisse como um espaço para as pessoas se reunirem e se sentirem seguras para falar sobre assuntos delicados.
Antes do evento, esboçamos algumas ideias sobre o conteúdo que o site provavelmente deveria ter e, em seguida, apresentamos brevemente à equipe pela manhã. Os grupos se reuniram em torno de suas mesas e o sprint começou. Em oito horas ativas, tínhamos todo o conteúdo textual pronto, a identidade visual pronta, o conceito/esboço de um grande infográfico do sistema de vigilância, várias iterações do aplicativo de mapeamento, mas, o mais importante, tínhamos 30 pessoas reunidas e trabalhando juntas em prol de um objetivo: combater a vigilância biométrica em massa. A maioria de nós tinha acabado de se conhecer, alguns se conheciam, mas estavam colaborando pela primeira vez, e muitos ainda estavam ativos no projeto em 2022.
Indo além da bolha
Em resumo, essa parte foi sobre:
«a caçada» - um mapa de câmeras feito por crowdsourcing,
«reconquiste seu rosto» - fazer uma petição para proibir a vigilância biométrica,
«juntos contra milhares de câmeras» - criação de uma campanha de financiamento coletivo.
Depois de envolvermos a comunidade diretamente interessada, queríamos ir além e atingir públicos mais amplos para criar mais conscientização e apoio.
Após o evento para avançar, passou-se um ou dois meses até que o aprimorássemos e traduzíssemos o conteúdo para o inglês. A tradução foi importante porque obviamente fomos um dos primeiros casos (cobaias) do mundo «ocidental» com um problema que outros países também iriam enfrentar, mais cedo ou mais tarde. Portanto, nosso caso é uma fonte valiosa de informações e conscientização sobre o tópico e seus desenvolvimentos, útil para pesquisadores, jornalistas e ativistas de todo o mundo.
Assim que lançamos site https://hiljade.kamera.rs ele foi intensamente compartilhado nas mídias sociais e também recebemos atenção da mídia tradicional, o que resultou em aparições na TV e no rádio. Sabíamos que o website e seu conteúdo funcionavam muito bem quando percebemos que essas aparições na mídia estavam ocorrendo sem problemas. - As redações tinham tudo em um só lugar para fazer uma matéria. Todas as pistas e informações de que os editores precisavam, todas as perguntas e respostas para os jornalistas estavam lá, só precisávamos aparecer e conversar sobre o assunto. Por fim, no final de cada aparição, quando perguntados sobre o que os cidadãos poderiam fazer, estávamos preparados para uma chamada concreta à ação: ajude-nos a mapear as câmeras pela cidade!
CTA «The Hunt» (A caçada): colaboração do público para localizar câmeras
O fato de o Ministério do Interior não ter fornecido informações sobre o projeto, nem o mapa e o número exato de câmeras instaladas até o momento, foi uma boa oportunidade para «ajudá-los» a fazer isso, buscar responsabilidade e conscientizar os cidadãos sobre o problema da vigilância em massa.
Depois de uma tentativa desajeitada de criar um aplicativo de mapeamento de crowdsourcing do zero durante o evento de sprint, decidimos usar um aplicativo de código aberto existente e apenas adaptá-lo às nossas necessidades.
Para evitar possíveis spams e problemas com a relevância dos dados que receberíamos dos cidadãos, em vez de convidar as pessoas a usar o aplicativo em si, pedimos que elas enviassem fotos das câmeras de vigilância e seus locais pelo Twitter, com uma hashtag, ou diretamente por e-mail. Esse processo exigiu uma administração ocasional do conteúdo recebido de nossa parte, mas acabou não sendo uma tarefa muito exigente, facilitando muito o gerenciamento e a verificação dos dados. Além disso, esse tipo de mecanismo acabou sendo uma boa decisão, pois os cidadãos ficaram felizes em publicar fotos no Twitter, o que foi um ótimo engajamento na campanha e uma promoção para a conta da iniciativa no Twitter e sua atividade constante.
Para promover essa ação, criamos novamente uma página no site da iniciativa - https://hiljade.kamera.rs/lov/ - onde publicamos instruções básicas, gráficos com modelos de câmeras que «caçamos» e um mapa temporário. Os mapas de câmeras e os gráficos com a frase «como reconhecer uma câmera que reconhece você?» foram muito bem recebidos nas redes sociais, mas também em portais online e agências de notícias. A mídia gostou da chamada à ação e do fato de que foram exibidos elementos gráficos interessantes. Tudo isso levou a mais cobertura da mídia sobre a campanha e nossa história, bem como a novas aparições de convidados em programas de TV.
Fonte da imagem: SHARE Foundation / #hiljadekamera
CTA «Reclaim Your Face» (Reconquiste seu rosto): petição para proibir a vigilância biométrica em massa
Muitas pessoas são céticas com relação a petições. Há poucos sistemas em que elas têm peso legal e levam a mudanças diretas. No entanto, descobriu-se que sua influência é, na maioria das vezes, indireta e que as petições podem, na verdade, contribuir para exercer autoridade moral e divulgar a conscientização sobre um determinado problema. Quando colegas da European Digital Rights (EDRi) sugeriram que fizéssemos uma petição para proibir a vigilância biométrica em massa com várias outras organizações na Europa, ficamos imediatamente céticos. Depois de apenas um mês, descobrimos que essa foi uma das atividades mais importantes para nós, a longo prazo, durante toda a campanha.
Organizar uma petição na era digital pode ser fácil. É possível criar uma conta em uma das plataformas de petição online e depois compartilhar esse link nas redes sociais. No entanto, essa simplicidade tem um lado negativo:
Em primeiro lugar, há uma grande saturação do público com a grande quantidade de petições nas redes sociais, o que dificulta a visibilidade e limita a atenção.
Em segundo lugar, você está convidando as pessoas a deixarem dados em sites cujas políticas de dados e privacidade você não pode controlar (muitos estão vendendo endereços de e-mail, há vazamentos de dados, cookies, rastreadores etc.).
Terceiro, você não pode controlar a interface e a maior parte do conteúdo dessas páginas de petição padrão, o que prejudica a funcionalidade e o envolvimento do público, pois o design universal feito para atender a todos nunca será tão bom quanto um design exclusivo criado para uma necessidade especial.
Organizar uma petição dessa forma seria semelhante a promover negócios por meio de sites GeoCities (genéricos), em vez de ter seu próprio site.
É claro que criar seu próprio site, um microssite, um site de página única e uma plataforma de petição exclusiva exige recursos. Além das questões técnicas, as boas petições exigem texto de qualidade, identidade visual, design e produção de diferentes elementos de comunicação, plano de promoção etc. - O que fez a diferença para nós e para a nossa campanha foi a importância da cooperação entre organizações com ideias semelhantes e a participação em organizações internacionais como o EDRi. Nossa petição foi organizada em vários países ao mesmo tempo por organizações locais, portanto, a maioria dos ativos acima foi criada de forma colaborativa e, em seguida, cada organização apenas localizou os materiais.
De todos os elementos necessários para uma petição, o mais desafiador de produzir e localizar foi provavelmente o contador de assinaturas, um pequeno software em que os signatários da petição precisam inserir seus dados. Ele tinha que ser feito sob medida, privativo por design (sem rastreadores e com políticas de privacidade localizadas) e, em seguida, traduzido, codificado por cores e, por fim, incorporado ao site de cada organização/país da petição. Quando tudo estava pronto, lançamos a petição simultaneamente.
Localmente, entramos em contato com vários apoiadores que puderam criar algum conteúdo relacionado à petição, o que contribuiu para a promoção. Este é um trabalho de um artista de quadrinhos que cobre notícias diárias:
Fonte da imagem: Igor Lečić / milandog.rs. Tradução do sérvio para o inglês do texto da imagem: “São muitos Sancho! / O que devemos fazer? /Vamos assinar a petição!”
A reação à petição foi incrível. Milhares de cidadãos se inscreveram durante as primeiras horas. Os meios de comunicação cobriram o assunto e as mídias sociais o seguiram. Foi um dos tópicos de tendência por um ou dois dias, o que é ótimo para a conscientização.
Mas por que essa foi uma das atividades mais importantes da campanha, conforme mencionado anteriormente?
Ao assinar a petição, os cidadãos poderiam optar por receber notícias sobre a campanha. Depois de apenas alguns dias, tínhamos quase 10.000 novos assinantes em nossa lista de e-mails, que a partir daquele momento se tornou nossa ferramenta de comunicação mais importante (até aquele momento, tínhamos apenas algumas centenas de assinantes orgânicos). Não dependíamos mais do Facebook, do Twitter e de outros gatekeepers para nos comunicarmos, pelo menos não com todas essas pessoas que optaram por participar (sem padrões manipuladores!) e que voluntariamente nos deram seu endereço de e-mail para se manterem informadas.
A petição também nos convenceu de que tínhamos um apoio cada vez maior. Esperávamos ver 1.000 assinaturas como um bom resultado, mas ele foi dez vezes maior. Isso abriu as portas para a última atividade do ano, ideal para a temporada de doações de Natal: uma campanha de financiamento coletivo.
CTA “Juntos Contra Milhares de Câmeras»: a campanha de financiamento coletivo
O nome e a marca da campanha já estavam ganhando reconhecimento e um pouco de estilo, portanto, em colaboração com duas marcas locais de roupas de rua, criamos e imprimimos algumas máscaras, gorros, bandanas e moletons. Essa foi mais uma maneira de os cidadãos se envolverem com a campanha, doarem e demonstrarem apoio. Isso levou a mais uma onda de conscientização sobre o problema e também foi o primeiro influxo financeiro para o projeto, pois não buscamos nem aceitamos nenhum financiamento de outras organizações por motivos de independência, conforme mencionado anteriormente. Isso nos ajudou a dar continuidade a todos os esforços de combate à vigilância em massa.
Fonte da imagem: SHARE Foundation / #hiljadekamera
O financiamento coletivo, as microdoações e as doações para organizações da sociedade civil (OSCs) em geral ainda não seram comuns na Sérvia (a partir de 2021-2022) devido a vários fatores, como fraco poder econômico individual, adoção tardia do comércio eletrônico, políticas financeiras rígidas e falta de interoperabilidade com serviços de pagamento globais. Portanto, definimos nossa meta de financiamento coletivo em cerca de 5.000 euros, que quase alcançamos em um dia durante o pré-lançamento de uma campanha para familiares e amigos. Isso nos fez mudar a meta para 10.000 euros, que também alcançamos muito antes do prazo final. Mais uma vez, ficamos surpresos com a quantidade de apoio de nossos concidadãos e nos sentimos ainda mais encorajados a continuar.
Multimedia e relações públicas
Nessa etapa, nos concentramos em:
produção multimídia - documentário curto, podcast e transmissão ao vivo,
narração de aparições na mídia - história de protesto sobre restrições à pandemia e exemplos de referência cruzada de dados.
Juntamente com todas as atividades descritas até agora, uma parte importante da comunicação do nosso trabalho foi o conteúdo de mídia que nós mesmos produzimos.
Diferentes formatos de mídia atingirão diferentes públicos e terão taxas de sucesso variadas, portanto, tentamos com vários resultados para os quais tínhamos recursos e pessoas com habilidades para produzi-los. Criamos um podcast, um pequeno documentário em vídeo e um evento de transmissão ao vivo. O podcast era uma forma experimental, parte de uma série contínua que acompanhava a tecnologia, a sociedade e o ciberespaço, portanto, mesmo que tenha sido transmitido apenas algumas milhares de vezes (mais por meio dos canais do Telegram e do feed RSS do que pelo YouTube), ele foi apreciado por comunidades de nicho e, portanto, importante para o reconhecimento da marca da campanha.
Nosso pequeno documentário em vídeo foi um grande sucesso. Filmamos câmeras pela cidade, várias ações que realizamos, inclusive o evento sprint/datathon, entrevistamos membros da iniciativa e o Comissário Nacional de Proteção de Dados. No entanto, fomos ignorados pelo Ministério do Interior quando entramos em contato com uma solicitação de entrevista. As belas filmagens com drones e a música distópica de artistas locais contribuíram muito para a direção, a câmera e a edição profissionais feitas por nossos afiliados. O alcance do filme foi grande não só porque foi compartilhado nas mídias sociais e assistido online, mas porque foi ao ar em pelo menos três estações de TV a cabo várias vezes no período de alguns meses. A maioria das emissoras de TV a cabo transmite o conteúdo de que gosta e que recebe de graça, especialmente se o formato for esteticamente adequado e se puder ser facilmente ajustado em termos de tempo (o nosso foi bom para as necessidades deles, pois tinha até 15 minutos de duração). Um dia após a estreia do documentário, percebemos que mais uma vez conseguimos romper outra bolha e atingir ainda mais concidadãos.
Por fim, em circunstâncias normais, organizaríamos um evento para promover o trabalho de nossa iniciativa até o momento e para estimular mais debates. No entanto, durante os lockdowns da pandemia (isso foi em 2020-2021), estávamos condenados a realizar um evento online. Em meio à «fadiga do Zoom», tivemos que criar algo um pouco mais interessante para sair dos espaços saturados de webinars e conferências online da sociedade civil.
Em vez de convidar as pessoas para uma videoconferência, produzimos uma transmissão online no YouTube, mas garantimos que ela fosse dinâmica, visualmente atraente e acolhedora. Tínhamos um apresentador e cinco ativistas no estúdio falando sobre diferentes segmentos da questão da vigilância e da campanha. Quatro convidados adicionais - um jornalista, um profissional de segurança, um especialista em tecnologia e um especialista em direito - participaram por meio de videochamada, seguida de uma sessão de perguntas e respostas em que os espectadores puderam fazer perguntas e comentários. A produção foi feita em nosso escritório e incluiu
um cenário cinza,
vários painéis de luz,
uma câmera DSLR,
uma câmera web,
um computador
todos alimentando o OBS (Open Broadcasting Software) por meio de placas de captura HDMI.
Fonte da imagem: SHARE Foundation / #hiljadekamera
No final, a transmissão ao vivo foi um pouco produzida demais, pois alguns dos espectadores perguntaram se era uma gravação ou uma transmissão ao vivo, mas, mesmo assim, foi uma maneira interessante de falar sobre o assunto e evitar outro evento online típico.
Basicamente, todo o conteúdo e as mensagens mencionadas acima foram disseminados organicamente, sem nenhuma estratégia específica de marketing e relações públicas, e com zero de fundos investidos em anúncios - nossa política é nunca pagar ao Facebook, ao Google e a outros sites semelhantes por promoção.
Nossa filosofia era que tópicos importantes e relevantes e um bom conteúdo acabariam encontrando seu caminho.
O alcance desse conteúdo poderia ser melhor? Provavelmente sim, mas éramos apenas um grupo de ativistas lidando de forma improvisada com uma questão emergente, com nossos próprios recursos e não com os interesses de terceiros.
O mesmo aconteceu com as relações públicas. Tivemos muitas aparições na mídia, mas ninguém da nossa equipe é um profissional de relações públicas ou porta-voz. Às vezes, isso é estressante, ter ansiedade e tremores na frente de câmeras e de jornalistas, em um programa matinal ao vivo ou em um podcast… Mas mostrar essas vulnerabilidades até certo ponto também é bom e pode até ser encantador, porque ninguém espera que os ativistas sejam porta-vozes profissionais ou que uma iniciativa de base contrate alguém assim. Na maioria das vezes, trata-se apenas de um bom entendimento das questões e da preparação de várias mensagens importantes alinhadas com eventos reais.
Por exemplo, protestos maciços em Belgrado no ano pandêmico de 2020 foram um forte exemplo de como o governo está impondo medo por meio de vigilância maciça e está usando esse sistema para suprimir a cultura de protesto. Naquela época, os funcionários do governo faziam ameaças constantes na mídia sobre o uso de imagens de vídeo e o processamento de manifestantes, o que fez com que muitas pessoas mudassem de ideia sobre sair às ruas. Essa foi uma ocasião relevante para explicar melhor o «efeito inibidor» e sua influência na sociedade e na participação em protestos.
Nossa principal mensagem ao nos comunicarmos durante esses dias foi que, em comparação com os protestos dos últimos vinte anos, esses foram os primeiros que ocorreram sob milhares de câmeras capazes de reconhecer nossos rostos e convertê-los em dados. Esses dados são facilmente armazenados em centros de dados do governo, prontos para serem cruzados com bancos de dados de pessoas empregadas no setor público, pessoas que recebem assistência social ou proprietários de pequenas empresas que podem precisar de inspeção fiscal adicional. Além disso, conforme comprovado em nossa pesquisa anterior, esse tipo de metadado geralmente é retido para sempre, portanto, mesmo daqui a cinco ou dez anos, alguém poderia negar-lhe um emprego, negar ao seu filho uma bolsa de estudos, ou uma vaga no jardim de infância, ou torná-lo eleitor contra a sua vontade porque, em algum momento, você estava nas ruas protestando contra decisões do governo às quais se opunha.
Embora possa parecer distópico, nossa pesquisa confirma que esses sistemas de vigilância combinados com a digitalização emergente e desajeitada, a centralização de dados, os programas de identidade digital, as cidades inteligentes e a governança algorítmica levam a sociedades autoritárias, portanto, essas ameaças precisam ser comunicadas e possíveis cenários sombrios como esses precisam ser narrados.
Quando os cidadãos entenderem as possíveis implicações desses sistemas na segurança e na privacidade por meio de exemplos, será justo que eles escolham se são a favor ou contra a vigilância em massa. Mas sem informações, narrativas diferentes e discussões abertas, não são os cidadãos que decidem, mas sim os governos.
Final: a primeira vitória
O que aconteceu até agora:
audiência pública em que as autoridades confirmaram que não usarão o reconhecimento facial, por enquanto,
novo projeto de lei de assuntos internos que legaliza o reconhecimento facial foi proposto e retirado,
comunidade estabelecida pronta para a próxima batalha.
Quanto mais nossa campanha crescia, menos o Ministro do Interior falava sobre o projeto de vigilância. Na verdade, por mais de um ano eles mantiveram silêncio total sobre o assunto. Nesse meio tempo, houve um vazamento de imagens de vídeo dessas câmeras de vigilância que eles confirmaram imediatamente quando perguntamos sobre isso. Para nós, isso significava mais uma prova de que os dados não eram seguros, portanto, também usávamos o exemplo sempre que nos comunicávamos sobre o assunto. Por outro lado, não tínhamos provas de que as autoridades começaram a usar o recurso de reconhecimento facial do sistema, que estava alinhado com as recomendações do Comissário Nacional de Proteção de Dados, mas o Ministério nunca falou sobre isso. Então, em 21 de maio de 2021, durante uma audiência pública sobre segurança da informação em uma Assembleia Nacional, quando perguntado sobre as crescentes preocupações com a vigilância em massa e o reconhecimento facial em Belgrado, um representante do Ministério respondeu:
«Estamos cientes de que os cidadãos estão preocupados com essa questão, e vimos mais de 200 artigos no último ano sobre vigilância biométrica em Belgrado. Posso garantir que, mesmo que algumas pessoas do Ministério do Interior achem que isso é possível pela lei atual, até que haja um debate público, até que haja consentimento e a Assembleia vote, não usaremos software para reconhecimento facial».
Três meses depois, o Ministro do Interior anunciou o novo Projeto de Lei de Assuntos Internos, que, entre outras coisas, continha disposições para legalizar um sistema de vigilância biométrica em massa. O anúncio foi feito às escondidas no site do Ministério, sem que a mídia fosse informada, com menos de três semanas de prazo para enviar comentários. Tivemos a sorte de descobrir o assunto uma semana antes do prazo final, mas estávamos preparados.
Participamos de um evento de discussão pública (o primeiro organizado pelo governo sobre esse tópico), enviamos nossos comentários ao Ministério e alertamos a mídia internacional e comunitária. Embora tenha havido um debate público acalorado por vários dias, tínhamos certeza de que isso não afetaria a intenção do governo e que aceitar comentários da sociedade civil era apenas uma formalidade antes de aprovar a lei. Quatro dias após o prazo final e com forte oposição pública, um comunicado de imprensa inesperado foi emitido pelo próprio ministro:
«Considerando todos os fatos, o Presidente Vucic me pediu para retirar o projeto de lei sobre assuntos internos do processo. Eu o farei. Essa é a minha derrota e arcarei com as consequências, mas também quero que o público saiba que continuarei a lutar por uma Sérvia segura, apesar dos agentes (estrangeiros) e de seus financiadores. O projeto de lei sobre assuntos internos foi retirado; vocês terão que procurar outro motivo para o sangue nas ruas de Belgrado.»
Parecia incrível, mas depois daquela citação no início deste artigo, em que o próprio ministro assegurava ao público que nada seria capaz de deter as novas câmeras inteligentes que já estavam sendo instaladas nas ruas de Belgrado, dois anos e meio depois, após todos os esforços que fizemos para provar que não era legal e que não a queríamos, a lei para legalizá-las foi proposta e retirada com urgência.
Porém, ainda mais importante, todos esses esforços, feitos em conjunto pelos ativistas e unidos por muitos cidadãos, formaram uma comunidade forte. Uma comunidade com sua própria narrativa, uma comunidade que protege a integridade de cada cidadão, uma comunidade pronta para o próximo desafio.
Publicado em novembro de 2022
Traduzido para português em abril de 2024
Recursos
«10 táticas para transformar informações em ação» - guias básicos, cartões para workshops e exemplos de campanha da Tactical Tech.
_CIVICUS Campaign Toolkits and Guides - recursos criados e/ou coletados pela CIVICUS, uma aliança global de organizações da sociedade civil e ativistas dedicados a fortalecer a ação cidadã e a sociedade civil em todo o mundo.
Site da campanha de vigilância anti-biométrica da SHARE Foundation - incluindo artigos, mapas colobrativos, comunicados à imprensa e atualizações da campanha. – Recursos Technopolice - ferramentas e métodos de iniciativas francesas que fornecem maneiras de vazar arquivos para pessoas que trabalham em empresas envolvidas em vigilância biométrica e administrações (conteúdo em francês). – Technopolice Campaigning Action Guide (conteúdo em francês).
Glossário
term-ascii-art
Arte ASCII - uma técnica de design gráfico e estética para apresentação de imagens montadas a partir de caracteres básicos impressos por computador. (Wikipedia).
term-biometric-surveillance
Vigilância biométrica - uma tecnologia que mede e analisa características físicas e/ou comportamentais humanas para fins de autenticação, identificação ou triagem. (Wikipedia)
term-chilling-effect
*Efeito inibidor - um efeito que reduz, suprime, desencoraja, atrasa ou de outra forma retarda o relato de preocupações de qualquer tipo. (Wikipedia)
term-counter-narratives
Contra-narrativas - histórias que impactam em ambientes sociais que se destacam às narrativas opostas (percebidas) dominantes e poderosas. O conceito de contra-narrativas abrange a resistência e a oposição como contadas e enquadrado por indivíduos e grupos sociais. (Fonte: Manual Routledge de Contra-Narrativas 2021)
term-false-narrative
Narrativa falsa - uma história que é percebida como verdadeira, mas tem pouca base na realidade.
term-street-marketing
Marketing de Rua - uma forma de marketing de guerrilha que usa métodos não tradicionais ou não convencionais para promover um produto ou serviço. (Wikipedia)
term-panopticon
Panopticon - a ideia de centralização total da vigilância é mais antiga do que os sistemas sofisticados de computador e se origina de uma proposta de arquitetura de prisão que remonta ao final do século XVIII. De acordo com mesmo projeto, a vida cotidiana dos presos é monitorada a partir de uma torret central, de onde alguém pode, mas não precisa, observar a todos. A ideia é que ao sugerir de que podem ser vistos a qualquer momento, os prisioneiros sempre se comportem como se estivessem sendo observados.
term-political-narrative
Narrativa política - um termo usado nas ciências humanas e ciências para descrever a maneira pela qual a narrativa pode moldar fatos e impactar na compreensão da realidade. No entanto, a narrativa política não é apenas um conceito teórico, é também uma ferramenta empregada por muitos a fim de construir as perspectivas das pessoas dentro de seus ambiente e alterar as relações entre grupos sociais e indivíduos. (Wikipedia)
term-rwd
Web design Responsivo é uma abordagem ao web design que faz com que as páginas da web sejam bem renderizadas em vários dispositivos e tamanhos de janela ou tela do tamanho de exibição mínimo ao máximo. (Wikipedia).